Por Emílio Figueira
Segunda-feira, numa feliz coincidência, voltando do meu dentista, eu estava sentado no ônibus pensando neste emocionante momento da minha vida que é estar participando como ator do espetáculo “Cidade Cheia de Graça”. Ao passar pelo Memorial da América Latina olhei para o prédio que abriga o Memorial da Inclusão. Um filme de mais de trinta anos se reproduziu em minha mente. De certo, foi ali naquele prédio que, em 2011, eu fui agraciado com o Prêmio Sentidos de Literatura, o mais importante da minha carreira. Mas isso não é tão importante diante da rica história viva que o Memorial de Inclusão guarda.
Uma história iniciada nos anos 70, quando um grupo de pessoas com as mais variadas deficiências resolveu se unir e lutar por direitos e lugares na sociedade. Um movimento realmente organizado e espalhou raízes por todo o Brasil. Fortaleceu-se em 1981 – Ano Internacional da Pessoa Deficiente - e eu já estava lá entre eles. Jovenzinho, mas já com consciência política. Não sabendo nem mesmo o que eu poderia fazer ali, porém com muita vontade de fazer! E hoje essas lembranças são um misto de tristezas e alegrias...
Tristezas pela saudade daqueles companheiros que em sua grande parte já são falecidos. Alegrias em pensar que, por ser jovem, pude ser uma testemunha ocular dessa história e ver como tudo se desenvolveu até aqui. Eu que nos anos 70 peguei o final da segregação no Brasil e ficava meus dias isolado dentro da AACD. Nos anos 80 vi nascer o conceito de Integração Social, quando o deficiente começou a ser “preparado” para viver em sociedade. Eu já estava atuante, escrevendo para jornais e revistas sobre nós pessoas com deficiência, realizando minhas primeiras pesquisas, publicando livros. Em meados dos anos 90 vi surgir a Inclusão Escolar e Social, quando a própria sociedade passou a se preparar para integrar toda e qualquer tipo de pessoa com deficiência. Claro que muitas coisas ainda precisam ser melhoradas, aperfeiçoadas; mas nos últimos anos caminhamos muitos, conquistamos os mais diversos setores, direitos e mudanças de mentalidades. Pelas nossas conquistas no dia a dia sou convicto em dizer que a Inclusão é um processo irreversível!
Voltando um pouco, quando iniciamos o Movimento, nossas reivindicações eram pelas coisas básicas, educação, transporte e lugares adaptados, lugar no mercado de trabalho, lazer, saúde, dentre outros. Só que hoje me questiono: Será que algum daqueles meus companheiros imaginou que atingiríamos também o mundo das artes?
Pouco mais de quatro décadas se passaram, já tivemos pessoas com variados tipos de deficiências fazendo papéis em programas de televisão. Temos o recente e estrondoso filme “Colegas” sem nenhuma pieguice e com um enredo realmente divertido. No teatro temos o Grupo ADID de Teatro nasceu em 1998, como extensão das aulas de artes cênicas oferecidas dentro da grade curricular da Associação para o Desenvolvimento Integral do Down que já realizou muitas e belas montagens teatrais; a Oficina dos Menestréis criada em 1991 por Deto Montenegro, mostrando que é possível trabalhar com inclusão social através do teatro, hoje é uma empresa de Teatro Musical com excelência comprovada tanto pela linguagem original e vocabulário próprio, onde pessoas com um leque variado de deficiências fazem parte do elenco tendo em seu repertório mais de 20 peças já montadas; a Cia Olhos de Dentro um Curso Livre de Teatro que atende crianças, adolescentes e adultos com objetivo de integrá-los na área de artes cênicas, promovendo e estimulando a convivência no meio teatral e na vida, além das oficinas, o projeto conta com montagens de espetáculos teatrais com a participação de todos os alunos e apresentações públicas no Teatro Ruth Escobar.
Os exemplos podem ser muitos, inúmeros pelo Brasil. Mas deles pego a própria Cia Olhos de Dentro por eu fazer parte dela. Há dez anos a atriz e pedagoga Nina Mancin aceitou o desafio de iniciar a Olhos de Dentro. No início eram só os cegos. Ano a ano foram entrando pessoas com as mais variadas limitações físicas ou sensoriais e a companhia se tornou o arco-íris da diversidade das deficiências convivendo no mesmo espaço, somando também com as pessoas ditas sem deficiências. Só que Nina, com maestria, sabe como ninguém nivelar, tratar todos com de maneira igualitária e natural. Na Cia Olhos de Dentro não existem coitadinhos, vítimas, privilégios, alguém menos capaz do que o outro. O que realmente existe são PESSOAS no mesmo espaço cênico, cada uma dando o melhor de si para em conjunto fazer o teatro acontecer. Profissionalmente!!!
Digo profissionalizante porque, sendo a Inclusão um processo irreversível, cada vez mais as pessoas com deficiência conquistarão espaço nos mais variados e imagináveis cargos profissionais. E no teatro, na televisão e no cinema não será diferente. Cada vez mais esses meios precisarão desse perfil de atores e atrizes preparados para atuar. E grupos como ADID, Os Menestréis e Olhos de Dentro são pioneiros, visionários em acreditar e preparar/profissionalizar pessoas com deficiências para esse novo mercado. São diretores, professores, preparadores corporais que sem nenhuma visão assistencialista de décadas atrás, promovem a rica mudança de atitude, a abertura deste novo lugar social que é o mundo artístico. Sem qualquer compaixão promovem com naturalidade a real inclusão de pessoas com e sem deficiência, um novo processo, uma nova conquista. E essa inserção de pessoas com deficiência física, sensorial ou intelectual de maneira geral no mercado de trabalho possibilita um grande e rico convívio para o acervo humano, um exercício efetivo de nossa cidadania!
Pois é... Quase quatro décadas se passaram desde que o Movimento pelos Direitos da Pessoa Deficiente iniciou-se no Brasil. Hoje sou seguro em afirmar que foi um movimento realmente válido, pois são muitas as conquistas que já alcançamos. Somos frutos dessa história, atingimos alvo até mesmo imagináveis algumas décadas atrás. Inclusive e, orgulhosamente, agora começamos também a conquistar os palcos teatrais.
Lembra-se quando citei que na segunda-feira “numa feliz coincidência” no início desta crônica? É que, infelizmente, quase todos que iniciaram o Movimento já faleceram. Mas um dia antes, no domingo, durante a terceira apresentação no nosso espetáculo “Cidade Cheia de Graça”, eu estava sentado na coxia observando meus atuais companheiros atuando no palco. Emocionado, lembrei-me daqueles pioneiros que hoje estão todos retratados no Memorial da Inclusão e eu disse mentalmente: “Valeu amigos! Vejam aí, aquelas sementes que vocês plantaram no passado, hoje são lindas e grandes árvores frutíferas...”
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